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28 de março de 2024 12:07 AM

Coluna

UM ETERNO RECOMEÇAR

Gaudêncio Torquato
Em 20 de fevereiro de 2022

A cada estação do ano, o Brasil ganha um carimbo.
Neste momento, a marca aponta para cerca de 650 mil
mortos da pandemia, quase 30 milhões de contaminados e
mais de 130 mortos na tragédia de Petrópolis, RJ. As
intempéries do ciclo de chuvas, crateras, devastação e
mortes, típicos dos meses de janeiro e fevereiro na região
Sudeste, cedem lugar à descontração, por ocasião do
período carnavalesco, na cabal demonstração de que o
slogan pátrio nunca foi ordem e progresso, mas o eterno

recomeço que a ampulheta do tempo, vira e mexe, impõe
como o nosso conceito de devir.

Mas nesse ano, face à pandemia do coronavírus, o
tempo de dor e tristeza se prolongará, pois o carnaval não
será a festa da descontração e alegria que tanto faz a fama
do Brasil no mundo.

O fato é que nossas tropicais plagas veem agravadas
suas mazelas de início de ano, com os cemitérios lotados
de pessoas que não resistiram ao furor de um vírus e à
ausência de políticas públicas voltadas para a prevenção de
catástrofes. Entoamos nesse momento o canto das mortes
anunciadas. E as tragédias que se abatem sobre milhões de
famílias se multiplicam aqui e ali, a exibir as contradições
de um território continental, farto de chuvas em alguns
espaços e carente em outros.

A falta de quase tudo estampa sua face horrenda pelos
logradouros de todos os quadrantes. Pedintes se amontoam
em seus farrapos por baixo de pontes e viadutos. A
criminalidade, particularmente na forma de assaltos à mão

armada, se expande. Muitos morrem de inanição por falta
de alimento adequado. Mas o estouro das verbas públicas
daqui a pouco abrirá os currais eleitorais, irrigando
mandatos e escancarando os buracos do Estado.

A estética da miséria desfila gritos de horror e comoção,
com as ruas superlotadas por águas de inundação e os
objetos que sobraram das casas que desmoronaram nas
enchentes.

As forças naturais recebem as críticas, mas a mãe
natureza não tem tanta culpa. A obra de devastação a cargo
do homem, em sua incessante obstinação para apressar o
fim do planeta, é a principal responsável por catástrofes. E
no Brasil, basta olhar para os orçamentos para percebermos
que os recursos acabam sendo desviados para outros fins
que não os da prevenção contra catástrofes.

Os homens públicos deveriam ir ao paredão da
vergonha por não construírem barreiras preventivas nos
espaços que administram. Deixam-se levar por um
obreirismo que confere visibilidade e votos, incrementando

o Custo Brasil, e frequentemente se esforçando para apagar
rastros de antecessores e motivar comparações que os
favoreçam.

A lama tóxica invade cidades mineiras e regiões
fluminenses. O trabalho voluntário mostra a solidariedade
de brasileiros, mas não evitam a maré de improvisação que
grassa na administração de Estados e municípios, onde
interesses de máfias do poder público se unem aos
interesses de grupos privados.

Em São Paulo, gigantesca cratera se abre no caminho do
metrô, a sinalizar a incúria de administradores e consórcios
formado por empreiteiras. A pecúnia desempenha papel
central na tragédia. No País da improvisação, qualidade se
confunde com quantidade. Para arrematar o mosaico de
desleixo, competências constitucionais são distribuídas de
maneira irregular entre os entes federativos.

União, estados e municípios repartem áreas comuns
como serviços sociais, meio-ambiente e habitação etc. O
resultado é uma sobreposição de ações, particularmente

nos palanques midiáticos, aqueles que impressionam
eleitores. Enquanto isso, projetos escondidos, como os de
saneamento, são relegados ao segundo plano. Um governo
eficaz é aquele com aptidão para prever problemas e
antecipar soluções. Onde estão esses governos? A ausência
de planejamento se faz ver em toda a parte.

Os fatos de hoje se repetiram no passado e se
multiplicarão no amanhã. Um eterno retorno, ou, se
preferirem, um eterno recomeço. Uma luzinha de
esperança se acende no meio da escuridão, sob o clamor de
contingentes cada vez maiores que saem de seus barracos,
nas margens, para exigir dos mandatários o atendimento de
suas demandas. Sob pena de os governantes não terem o
benefício de uma segunda vez em seus feudos de poder.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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